ARTIGO

Aplicação de métodos alternativos ao uso de animais no desenvolvimento e controle da qualidade de produtos imunobiológicos no Brasil

Application of alternative methods to the use of animals in the development and quality control of immunobiological products in Brazil

Rafaela Küster Gon *
Programa de Pós-graduação em Vigilância Sanitária, Brasil
José Mauro Granjeiro
Inmtero, Brasil
Isabella Fernandes Delgado
Programa de Pós-graduação em Vigilância Sanitária, Brasil

Aplicação de métodos alternativos ao uso de animais no desenvolvimento e controle da qualidade de produtos imunobiológicos no Brasil

Vigilância Sanitária em Debate, vol. 11, pp. 1-8, 2023

INCQS-FIOCRUZ

Recepção: 05 Outubro 2022

Aprovação: 13 Março 2023

RESUMO

Introdução: Há décadas, a necessidade, o número e o potencial preditivo do uso de animais para fins de pesquisa, produção e controle da qualidade de diversos produtos vêm sendo questionados.

Objetivo: Mapear os testes in vivo utilizados nos laboratórios públicos oficiais (LPO), verificando a aplicação ou não de métodos alternativos.

Método: Os LPO foram identificados e convidados a responder um questionário de triagem para mapear os métodos alternativos utilizados por eles seguido de uma entrevista para avaliar o interesse em desenvolver um novo método alternativo, a aplicação do princípio dos 3Rs e a percepção dos fabricantes em relação à tendência da substituição por métodos alternativos.

Resultados: Os LPO brasileiros reportaram dificuldades para a implementação de alternativas in vitro , entre elas a necessidade de adequação de infraestrutura, insuficiência de pessoal e falta de capacitação dos quadros técnicos. Alguns respondentes alegam a necessidade de sistematização dos trâmites burocráticos e regulatórios aplicáveis ao conceito dos 3Rs no campo de imunobiológicos. Todos os respondentes apresentaram interesse na implementação de alternativas in vitro , apontando vantagens como: redução de tempo e custo das análises, maior precisão de resultados, minimização de dificuldades inerentes aos testes in vivo e à manipulação de animais.

Conclusões: Promover um cenário – sob o ponto de vista político, técnico e regulatório – mais propício para validação e implementação de métodos alternativos no Brasil contribuirá para a redução de custo e o tempo na liberação de lotes de produtos imunobiológicos. Há espaço para a redução do uso de animais em alguns testes in vivo utilizados na LPO, porém, há necessidade de investimento em infraestrutura e pessoal qualificado em testes alternativos.

Palavras chave: Métodos Alternativos+ 3Rs+ laboratórios Públicos Oficiais+ controle da Qualidade+ produtos Imunobiológicos.

ABSTRACT

Introduction: For decades, the need, number and predictive potential of the use of animals for research purposes, production and quality control of various products have been questioned.

Objective: To map the in vivo tests used in official public laboratories (LPO), verifying the application or not of alternative methods.

Method: LPOs were identified and invited to answer a screening questionnaire to map the alternative methods used by them, followed by an interview to assess interest in developing a new alternative method, application of the 3Rs principle, and manufacturers’ perception of regarding the trend of substitution by alternative methods.

Results: Brazilian LPOs reported difficulties in implementing in vitro alternatives, including the need to adapt infrastructure, insufficient personnel and lack of training of technical staff. Some respondents claim the need to systematize the bureaucratic and regulatory procedures applicable to the concept of the 3Rs in the field of immunobiologicals. All respondents showed interest in implementing in vitro alternatives, pointing out advantages such as: reduction of time and cost of analyses, greater accuracy of results, minimization of difficulties inherent to in vivo tests and animal handling.

Conclusions: Promoting a scenario - from a political, technical and regulatory point of view - more conducive to the validation and implementation of alternative methods in Brazil will contribute to the reduction of cost and time in the release of lots of immunobiological products. There is room for reducing the use of animals in some in vivo tests used in LPO, however, there is a need for investment in infrastructure and qualified personnel in alternative testing.

Keywords: Alternative Methods, 3Rs, official Public Laboratories, quality Control, immunobiological Products.

INTRODUÇÃO

O uso de animais em laboratórios para fins de pesquisa e desenvolvimento, bem como para testes rotineiros de controle da qualidade, é uma prática global. Contudo, questiona-se a real necessidade do uso de animais, o número de animais utilizados e o potencial preditivo e de transferibilidade dos resultados para seres humanos1 , 2 , 3 . A experimentação animal continua a gerar preocupação pública e política em todo o mundo. Poucos países coletam e publicam estatísticas de uso de animais, mas este é um primeiro e essencial passo para a responsabilização pública e um debate informado, além de ser importante para a formulação de políticas e regulamentação eficazes. Espera-se que a implementação dos 3Rs ( reduction, refinement and replacement, em português: redução, refinamento e substituição) resulte em um declínio no uso de animais, mas sem estatísticas regulares e precisas, isso não pode ser monitorado. Apesar da disponibilidade de métodos alternativos, os animais continuam a ser usados em nível global para diferentes escopos e em diferentes campos de estudo. Os principais objetivos dos experimentos em animais vivos são: adquirir conhecimentos biológicos básicos; descobrir e desenvolver medicamentos, vacinas e dispositivos médicos; realizar testes de segurança e controle da qualidade de medicamentos, de outros produtos químicos e de produtos de consumo; e fazer pesquisa ambiental e de educação4 .

Um relatório disponibilizado em 2015 indicou que 37 países, para os quais existem estatísticas disponíveis (sendo eles: 30 da Europa, três da Ásia, dois da Oceania e dois da América do Norte), relataram o uso de 41,8 milhões de animais em laboratórios (definidos de acordo com a Diretiva da União Europeia 2010/63/UE; artigo 3.1) naquele ano5 , 6 .

Abordagens alternativas para testes em animais vêm ganhando impulso com um número crescente de métodos obtendo aceitação regulatória graças, em grande parte, aos esforços de validação destes testes, que auxiliam na garantia de novos métodos e tecnologias alternativas para testes de toxicidade e controle da qualidade, como, por exemplo, modelos in vitro7 .

Embora o senso comum aponte que metodologias in vitro possam representar uma opção promissora para a pesquisa em geral, e que essas alternativas possam vir a substituir um número considerável de métodos in vivo , há de se considerar que o processo de desenvolvimento e validação de novos métodos é laborioso e requer grande investimento de tempo, dinheiro e pessoal capacitado8 , 9 , 10 .

Via de regra, os métodos alternativos quando comparados aos testes in vivo oferecem vantagens como menor custo e tempo reduzido de análise11 . Os métodos in vitro apresentam como benefício o fato de serem menos sujeitos a interferentes como o próprio metabolismo do modelo em teste e condições ambientais (ruído, temperatura, umidade, luminosidade etc.), quando comparados aos modelos animais11 , 12 , 13 . Além disso, métodos in vitro apresentam maior facilidade de disseminação para outros laboratórios14 .

O conceito dos 3Rs é cada vez mais central para o planejamento, a conduta e a regulamentação de experimentos com animais15 . A substituição de animais por métodos in vitro validados e outros métodos não animais é um objetivo apoiado pela sociedade e por legislação em muitos países16 .

A ausência de estatísticas regulares e precisas, incluindo informações sobre tendências em uso animal, é um limitante no que se refere a um diagnóstico mais preciso e de âmbito mundial sobre a substituição de modelos in vivo17 . Outro viés se refere ao uso limitado dos métodos alternativos, ainda que o desenvolvimento destes métodos esteja associado a avaliações de segurança e controle da qualidade. Muitas vezes os modelos alternativos são usados apenas como abordagem de triagem em pesquisas científicas e, em menor escala, para fins regulatórios. Esse cenário indica a importância de se entender os obstáculos na adoção e validação de métodos alternativos18 , 19 por parte de instalações-teste que geram dossiês para registro de produtos regulados no escopo das boas práticas de laboratório20 .

Este estudo objetivou mapear os testes in vivo utilizados nos laboratórios públicos oficiais (LPO) brasileiros, produtores de imunobiológicos (vacinas e soros hiperimunes), para verificar a aplicação ou não de métodos alternativos.

MÉTODO

Inicialmente, em agosto de 2016, foi realizado um levantamento dos LPO produtores de imunobiológicos (soros hiperimunes e vacinas) no Brasil e identificado o portfólio de cada laboratório.

A coleta das informações ocorreu em duas etapas. Na primeira fase, entre o mês de setembro de 2016 ao mês de dezembro de 2016, um questionário de triagem (com dados relevantes quanto ao número de animais utilizados em testes laboratoriais) foi enviado e respondido por meio eletrônico pelo LPO. Na segunda fase, realizada no período entre os meses de janeiro e fevereiro de 2017, uma entrevista presencial foi feita (com dados mais aprofundados quanto aos testes com uso de animais e com verificação quanto ao desenvolvimento, aplicação e averiguação de métodos alternativos) no próprio LPO, com registro de áudio e com a intenção de aprofundar os dados coletados inicialmente. A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (CAAE 61167716.2.0000.5262, parecer nº 1.828.973).

O questionário de triagem foi aplicado visando obter dados estratégicos para embasar a segunda etapa da pesquisa, tendo sido respondido por profissionais responsáveis pela aquisição e utilização de animais nos diversos setores dos LPO. As questões abordaram os métodos alternativos ao uso de animais utilizados no LPO e incluíram as seguintes questões: i. quais produtos necessitavam do uso de animais? ii. os testes necessários eram aplicados no desenvolvimento de novos produtos ou em testes rotineiros de controle da qualidade? iii. quais e quantos animais eram utilizados nos testes?

Na segunda etapa, complementando o questionário, a entrevista presencial ocorreu seguindo um roteiro em formato de formulário que focou em: i. protótipo de desenvolvimento de um novo método alternativo, ii. aplicação do princípio dos 3Rs, e iii. percepção dos fabricantes em relação à tendência da substituição por métodos alternativos e demais aplicações de métodos alternativos, em consonância com as políticas da Rede Nacional Brasileira de Métodos Alternativos (RENAMA). Os representantes de cada laboratório foram entrevistados juntos, em datas e horários previamente agendados, e o formulário foi utilizado como base para as perguntas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os seis LPO brasileiros participaram da pesquisa e o escopo do trabalho foi restrito aos produtores de imunobiológicos: vacinas e soros hiperimunes. Por questão de confidencialidade, os LPO são identificados pelas letras A, B, C, D, E e F.

Os LPO A, B, C, D, E e F produzem juntos 38 tipos de produtos imunobiológicos, sendo que 21 deles, listados na Tabela , utilizam animais em seus testes de controle da qualidade para liberação dos lotes. Também estão indicados na Tabela a descrição destes testes, a espécie e o número de animais necessários para a liberação de um lote de cada um desses produtos de acordo com a Farmacopeia Brasileira (FB).

Tabela
Imunobiológicos produzidos pelos LPO com os respectivos testes* que utilizam animais.
Imunobiológicos produzidos pelos LPO com os respectivos testes* que utilizam animais.
*testes referentes ao controle da qualidade para liberação de um lote; **quantidade utilizada para liberar um lote.

Nesta pesquisa foi possível verificar que os LPO brasileiros realizam os testes de controle da qualidade de acordo com os requisitos da FB, a qual descreve as etapas fundamentais para a execução dos métodos, bem como a quantidade de animais utilizada em cada teste. Alguns laboratórios já utilizam métodos alternativos destacados na FB e na literatura, como por exemplo, o teste in vitro para avaliação da potência do soro antirrábico (técnica de rápida inibição de focos fluorescentes, RFFIT)21 , 22 , 23 , validado em estudo entre o Instituto Nacional de Controle da Qualidade em Saúde (INCQS) e o Instituto Butantan24 , o teste in vitro para avaliação da potência do componente antitetânico (método de inibição de ligação da toxina, ToBI)21 , 25 , 26 e o teste de endotoxina bacteriana in vitro ( t este de lisado de amebócito Limulus , LAL)21 , 27 .

É possível verificar que os testes de potência, realizado em 13 dos 21 imunobiológicos, e de pirogênio (realizado em 19 de 21) são os mais realizados, sendo o de potência o que demanda o maior número de animais por teste (por lote do produto).

Os testes de pirogênio são testes de segurança realizados na rotina de produção e controle da qualidade de produtos injetáveis, conforme exigência das agências regulatórias mundiais. Atualmente, existem três possibilidades de teste disponíveis: i) Teste de Pirogênio in vivo , realizado em coelhos21 ; ii) Teste de endotoxina bacteriana, que utiliza o extrato aquoso dos amebócitos circulantes do Limulus polyphemus preparado e caracterizado como reagente LAL21 ; e iii) sistemas de teste que utilizam sangue total ou monócitos humanos, denominados Teste de Ativação de Monócitos (MAT), previsto na Farmacopeia Europeia28 e na literatura científica27 , 29 . Os testes de pirogênio, utilizados em todos os LPO para a liberação de lotes produzidos dos imunobiológicos listados na Tabela , podem ser substituídos pelo LAL (substituição parcial)21 e pelo MAT28 . Contudo, o LAL está efetivamente implantado em três LPO para 16 produtos, o MAT em dois LPO para dois produtos e o LAL+MAT em apenas um LPO para um produto, os demais ainda são avaliados pelo Teste de Pirogênio in vivo.

Até a presente data, não há descrição do uso do MAT na FB e apenas cinco produtos imunobiológicos (vacina febre amarela, vacina antipoliomielite 1, 2, 3 inativada, Haemophilus influenzae tipo b, vacina influenza e vacina meningocócica grupo C) fazem uso exclusivamente do LAL para a detecção de pirogênio, por determinação de endotoxina bacteriana21 , 27 , 29 , 30 . Esta lacuna regulatória, citada pelos LPO no presente estudo, representa grande dificuldade para os laboratórios produtores, pois geralmente somente a FB é utilizada como referência. Nas monografias das vacinas adsorvida difteria e tétano adulto (DT); difteria, tétano e pertussis acelular (DTP) e soro antitetânico a FB já faculta a utilização de testes in vitro31 e a Resolução Normativa nº 45, de 22 de outubro de 2019, do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), que reconhece método alternativo ao uso de animais em atividades de pesquisa no Brasil, afirma que o teste de endotoxina bacteriana in vivo deve ser descontinuado até 25 de outubro de 202432 .

O teste de potência com utilização de animais é previsto para a liberação de lote de 21 dos imunobiológicos citados, dos quais apenas para os soros antitetânico e antirrábico (produzidos por três LPO) há método alternativo previsto na literatura: ELISA (do inglês, Enzyme-Linked Immunosorbent Assay )21 ou ToBI21 (antitetânico) e RFFIT (antirrábico). O ToBI está implantado em um LPO enquanto o RFFIT está operacional nos três LPO que produzem soro antirrábico33 , 34 . O ToBI também está em uso em um LPO para liberação de lote de vacina difteria e tétano adulto e infantil, substituindo o teste de potência. Para liberação de lote da vacina contra raiva, há referência ao teste de imunofluorescência em cultura21 , no entanto não implantado no LPO. Em oposição, para o soro antiloxoscélico, um LPO refere o teste de cultura de células, porém sem referência na literatura de métodos alternativos.

Para toxicidade específica, toxicidade (reversão), inocuidade, imunogenicidade, atividade imunogênica, reatividade cutânea e micobactérias virulentas, não foi relatada a aplicação de métodos alternativos por nenhum dos LPO, bem como não constam testes sem uso de animais na FB (para os produtos relacionados).

No momento da pesquisa, o teste de toxicidade inespecífica para a liberação dos lotes de produtos biológicos já estava sendo abolido pelos LPO, mediante aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O banimento deste teste dos compêndios oficiais é baseado em estudos internacionais35 e acompanha a tendência mundial de banimento de testes conduzidos em animais que pouco contribuem para a avaliação de segurança e eficácia de produtos36 , como por exemplo o teste de avaliação de toxicidade aguda por DL50%. Neste sentido, o INCQS, após apreciação retrospectiva de seus resultados e com mais de 25 anos de experiência na emissão de laudos analíticos para a liberação de lotes de soros hiperimunes e vacinas para o Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde (MS), encaminhou ao Concea, no ano de 2016, uma recomendação pelo banimento do teste de toxicidade inespecífica em vacinas37 . Um estudo retrospectivo a respeito do teste de toxicidade inespecífica em produtos biológicos analisados entre os anos 1999 e 2012 no INCQS demonstrou que este teste utilizava um grande quantitativo de animais sem a contrapartida de demonstrar claramente a segurança dos produtos em questão, o que compromete a aplicação dos 3Rs e apoia a decisão pelo banimento deste teste no processo de controle da qualidade de produtos biológicos38 .

Segundo alguns entrevistados, dados provenientes de alguns estudos brasileiros já seriam suficientes para que alguns métodos alternativos fossem aceitos e difundidos para os demais LPO, como, por exemplo, o teste de endotoxinas bacterianas in vitro pelo LAL (para soros hiperimunes), o teste da potência biológica de soros antidiftéricos e antitetânicos e a avaliação da potência de soros antibotrópicos, pelo método ToBI, todos propostos por um dos LPO. Os dados levantados revelam que, caso o LAL e o ToBI sejam implementados por este LPO, cerca de 1.320 animais (entre coelhos, cobaias e camundongos) deixariam de ser utilizados por semana (levando em conta o número de lotes produzidos no momento da pesquisa).

Além disso, na entrevista, foram evidenciadas algumas iniciativas pontuais de pesquisas mais básica, tais como as propostas em desenvolvimento pelo laboratório E, ou seja, o teste de avaliação da dose mínima necrosante do veneno loxocélico em cultura de células e o teste de potência do soro antiloxocélico por ELISA e cromatografia. Ainda, os LPO B e C registraram a necessidade de investimento em equipamentos e materiais a fim de viabilizar a implementação dos métodos alternativos já preconizados na FB (como o RFFIT). Só no LPO B, por exemplo, caso o RFFIT seja implementado para a potência do soro antirrábico, o uso de aproximadamente 4.400 camundongos por ano seria cessado e, com a implementação do ToBI para o teste de potência do soro antitetânico, o uso de 3.810 camundongos por ano seria descontinuado.

Os laboratórios apontam que os trâmites necessários para validar e implementar um método alternativo em potencial não estão bem definidos, faltando melhores orientações relacionadas ao tema e maior relacionamento entre os laboratórios, de modo a encurtar a distância entre os LPO e os órgãos regulatórios. A necessidade de maior ênfase da FB nesta área, em conjunto com os órgãos envolvidos nos trâmites burocráticos, também é citada.

Cabe ressaltar que os soros hiperimunes e as vacinas são produtos largamente utilizados pela população brasileira e são considerados produtos de grande interesse pelo MS. Além do controle da qualidade efetuado pelos LPO, o INCQS faz análises lote a lote de soros e vacinas para o PNI, antes da distribuição destes produtos. Portanto, uma vez reconhecida a aplicabilidade de potenciais métodos alternativos, o número de animais poderia ser reduzido, ratificando os conceitos éticos e reduzindo o custo e o tempo das análises.

Também é importante destacar que os imunobiológicos produzidos pelos LPO, além do interesse brasileiro, podem ser exportados e, desta forma, é importante ratificar o papel do Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM) em estimular a condução dos estudos de métodos alternativos em consonância às tendências mundiais, o que, em termos internacionais, refletiria a credibilidade do Brasil no processo de produção e exportação destes produtos analisados dentro de padrões éticos e de qualidade.

A substituição da experimentação animal pelas metodologias alternativas existentes realizadas pelos LPO dependerá do contexto em que estas metodologias e estes laboratórios estejam inseridos. O desenvolvimento, a difusão de métodos e abordagens alternativas e sua aplicação no controle da qualidade e aceitação pelos órgãos reguladores estão em uma fase inicial, mas é possível verificar importantes avanços.

A disponibilização mundial dos métodos validados ocorre, geralmente, por meio dos guias da Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD)39 e/ou de farmacopeias21 . As diretrizes de testes da OECD são uma coleção de métodos de teste, internacionalmente aceitos, que se concentra para determinar a segurança dos produtos químicos e preparações químicas40 , portanto para produtos biológicos, a farmacopeia deve realizar o trabalho de propor novos métodos alternativos.

Alguns LPO estão ligados à RENAMA, que tem por missão promover o desenvolvimento, a validação e a implementação de métodos alternativos ao uso de animais, e que tem estimulado a implantação de métodos alternativos ao uso de animais por meio de treinamento técnico e a implementação de metodologias validadas41

Todo processo de produção e controle da qualidade de produtos imunobiológicos, que necessitem em alguma de suas etapas, do uso de animais para experimentação, se beneficiará de estudos voltados à validação de métodos alternativos, uma vez que estes métodos poderão representar uma maior qualidade e especificidade na determinação de diversos efeitos, bem como uma redução de custo e de número de animais próximo a 70%42 , além da abertura para o mercado internacional. A discussão sobre a utilização de animais na pesquisa, a intenção de redução do seu uso e o desenvolvimento e/ou validação de novas metodologias têm sido aos poucos introduzidos na realidade brasileira. Por esta razão, torna-se de grande importância a discussão, a interação e a compilação de dados em torno deste tema.

CONCLUSÕES

A análise dos resultados obtidos no estudo realizado permite constatar que todos os LPO elencados fazem uso de animais em testes de controle da qualidade para liberação do lote produzido. Poucos laboratórios estão com produtos em fase de desenvolvimento, mas, mesmo nesta fase, animais são utilizados para controle da qualidade. Alguns testes in vivo utilizados pelos LPO possuem métodos alternativos, como o teste de endotoxina bacteriana in vitro (LAL), teste de potência do soro antirrábico (RFFIT e ELISA) e teste de potência do soro antitetânico (ToBI), porém a implementação dos métodos alternativos pelos LPO é dificultada por falta de infraestrutura, pessoal qualificado, aspectos técnicos e de tempo para a implementação dos testes, entre outras. Ainda assim, os representantes dos LPO julgam ser necessário maior investimento nesta área.

Os métodos de avaliação de dose mínima necrosante por cultura de células para soro antiloxocélico e potência por ELISA e cromatografia para o soro antiloxocélico e soro antibotrópico são referidos como métodos promissores e deveriam ser alvo de estudos mais aprofundados. E os métodos para determinação da potência de soros hiperimunes, doseamento da fração diftérica, doseamento da fração tetânica, para potência do soro antitetânico e para potência da fração botrópica pelo método ToBI e teste de pirogênio in vitro para soros hiperimunes (MAT e LAL) apresentam potencial para serem incorporados à FB.

O desenvolvimento de novos métodos, a validação de outros já propostos e a viabilidade da aplicabilidade dos métodos já contidos na FB devem ser considerados e fomentados pelos órgãos responsáveis pela implementação de métodos alternativos no Brasil. Esta adequabilidade viabilizará uma relevante redução no número de animais atualmente utilizados no controle da qualidade de produtos imonubiológicos.

Os dados pautados reforçam a necessidade do investimento financeiro e suporte de dados técnico-científicos e infraestrutura de modo a acelerar a implementação de metodologias alternativas para o uso de animais em escala industrial em produtos imunobiológicos produzidos pelos LPO brasileiros.

Há espaço para a redução do uso de animais para alguns testes in vivo utilizados nos LPO, porém há necessidade de investimento em infraestrutura e pessoal qualificado nos testes alternativos. Promover um cenário – sob o ponto de vista político, técnico e regulatório – mais propício para validação e implementação de métodos alternativos no Brasil contribuirá para a redução de custo e o tempo na liberação de lotes de produtos imunobiológicos.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao MCTIC e à RENAMA (Projeto CNPq no405285/2015-9). O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal e Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Autor notes

* E-mail: rafakg@gmail.com

Declaração de interesses

Conflito de Interesse

Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.

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