RESUMO
Introdução: A Vigilância Sanitária atua por meio da fiscalização e inspeção para evitar que pessoas, estabelecimentos ou processos produzam situações de risco à saúde individual e coletiva.
Objetivo: Apresentar um diagnóstico situacional das ações sanitárias na área de produtos e serviços farmacêuticos no município de Fortaleza, Ceará, registradas no sistema Fiscalize, no período de janeiro de 2018 a dezembro de 2019.
Método: Trata-se de estudo descritivo, com acesso ao sistema Fiscalize, com busca por grupo de cadastro e data de registro, com visualização e cópia do conteúdo, individualmente, de cada inspeção. Os dados foram estratificados em notificados e autuados, categorizados por tipo de estabelecimento, bairro e data de ocorrência, não conformidade constatada e a legislação utilizada na fundamentação. Os resultados foram expressos em frequências absolutas e relativas.
Resultados: Nos 614 estabelecimentos fiscalizados, foram realizadas 948 inspeções e foram constatadas 2.830 inadequações sanitárias, das quais 385 (23,60%) foram autuadas e 2.445 (86,40%), notificadas. As irregularidades constatadas variaram de acordo com os inspecionados. Drogaria foi o grupo mais frequente dentre os estabelecimentos (420/614; n = 68,40%) e a inexistência de documentação sanitária obrigatória foi a não conformidade prevalente (491/2.830; n= 17,30%). A legislação mais utilizada para fundamentar as irregularidades foi a RDC Anvisa nº 44, de 17 de agosto de 2009, usada em 45,19% (1.279/2.830) das inadequações. Na distribuição por bairros, o centro da cidade concentrou o maior número de fiscalizados (44/614; n = 7,20%).
Conclusões: Os resultados demonstraram que a maioria dos estabelecimentos inspecionados seguiu os padrões sanitários legalmente previstos, pois apenas uma minoria das não conformidades sanitárias constatadas foi motivo de autuação, enquanto a maioria foi apenas notificada para apresentar melhorias.
Palavras chave: Vigilância Sanitária, sistema de Vigilância Sanitária, inspeção Sanitária, farmácia.
ABSTRACT
Introduction: Health Surveillance acts through inspection to prevent people, establishments, or processes from producing situations of risk to individual and collective health.
Objective: To present a situational diagnosis of the sanitary actions of the area of pharmaceutical products and services in the city of Fortaleza – Ceará, registered in the Fiscalize system, from January 2018 to December 2019.
Method: Access to the tax system, search by registration group and registration date, with the visualization and copy of the content, individually, of each inspection. The data were stratified into notified and fined, categorized by type of establishment, neighborhood and date of occurrence, non-compliance found, and legislation used in the reasoning. The results were expressed in absolute and relative frequencies.
Results: A total of 614 establishments were inspected, 948 inspections were carried out and 2,830 were found to be sanitary inadequacies, of which 385 (23.60%) were registered and 2,445 (86.40%) were reported. The irregularities found varied according to those inspected. Drugstore was the most frequent group among establishments (420/614; n = 68.40%) and the lack of mandatory sanitary documentation was the prevalent non-conformity (491/2,830; n = 17.30%). The legislation most used to substantiate irregularities was RDC Anvisa No. 44/2009, used in 45.20% (1,279/2.830) of inadequacies. In the distribution by neighborhoods, the city center concentrated the largest number of inspected (44/614; n = 7.20%).
Conclusions: The results showed that most of the inspected establishments followed the legally provided sanitary standards, because only a minority of the sanitary non-conformities found were grounds for action, while the vast majority were only notified to present improvements.
Keywords: Health Surveillance, health Surveillance System, sanitary Inspection, pharmacy.
ARTIGO
Ações de Vigilância Sanitária na área de produtos e serviços farmacêuticos em município de grande porte do Nordeste do Brasil
Health Surveillance actions in pharmaceutical products and services in a large municipality in Northeastern Brazil
Recepção: 21 Outubro 2022
Aprovação: 06 Março 2023
A interferência do Estado nas questões sanitárias nasce da necessidade de proteger os agrupamentos humanos da contaminação por doenças no final do século XVIII1 . As intervenções nas práticas de cura na produção de bens e serviços e nas relações de consumo foram se estruturando com o passar dos anos e são um grande desafio na atualidade, com o aparecimento de novas tecnologias2 , 3 .
No Brasil, a Vigilância Sanitária (Visa), como é conhecida hoje, foi conceituada na lei de criação do Sistema Único de Saúde (SUS), Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, como sendo as ações destinadas a eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde individual e coletiva, intervindo nos aspectos sanitários do meio ambiente, da produção de bens e serviços relacionados com a saúde, abrangendo a produção, a circulação e o consumo de produtos e a prestação de serviços relacionados com a saúde. Essa definição alçou a Visa para posicioná-la em um patamar no qual impera a prática de prevenção, proteção e promoção da saúde, superando categoricamente a conhecida prática policialesca de outrora, em termos conceituais2 .
O Estado brasileiro, seguindo tendências internacionais, aprimorou sua atuação na área sanitária com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), posicionando-a dentro do SUS2 . Esta agência ficou incumbida de coordenar o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), que é composto também pelos órgãos de Visa dos estados e municípios. Entre os componentes do sistema existem as chamadas pactuações, que significam a divisão de responsabilidades para atuação entre estados, municípios e distrito federal4 .
Este sistema tem como objeto de interesse os produtos, as tecnologias, os processos, os procedimentos, o transporte de cargas e pessoas, a produção, a distribuição e o comércio de bens e a prestação de serviços que possam interferir direta ou indiretamente com a saúde5 .
A Visa atua através da fiscalização e inspeção sanitária para evitar que pessoas, estabelecimentos ou processos produzam situações de risco para a saúde da população exposta6 . Sua ação, a princípio, ser de caráter orientativo, visando a adequação sanitária, contudo, ela pode agir de forma coercitiva na tentativa de reduzir riscos, como, por exemplo, nos casos de apreensão de produtos ou interdição de estabelecimentos, tendo por base a legislação sanitária, que compreende leis, decretos, portarias, resoluções da diretoria colegiada (RDC) da Anvisa e instruções normativas5 .
Desde 2018, foi implantado no município de Fortaleza, Ceará, um sistema de informação intitulado Fiscalize, pelo qual os fiscais da Visa registram dados sobre suas ações no território7 . O município de Fortaleza é formado por uma área territorial superior a 312 km2 e tem uma população de 2.703.391 pessoas, sendo o segundo maior do Nordeste em número de habitantes8 .
O presente trabalho teve como objetivo apresentar um diagnóstico situacional das ações sanitárias na área de produtos e serviços farmacêuticos, que foram registradas no sistema Fiscalize, do município de Fortaleza, Ceará, no período de janeiro de 2018 a dezembro de 2019. Especificamente os objetivos consistiram em descrever as peculiaridades da fiscalização sanitária, identificando as não conformidades notificadas e autuadas, correlacionando-as aos tipos de estabelecimentos, bem como identificar os dispositivos legais infringidos.
Trata-se de estudo descritivo, que utilizou dados sobre as ações sanitárias realizadas pela fiscalização na área de produtos e serviços farmacêuticos do município de Fortaleza, município de grande porte do Nordeste do Brasil, no período de janeiro de 2018 a dezembro de 2019, devidamente cadastradas no sistema Fiscalize.
No início do período do estudo, o município contava com 1.201 estabelecimentos na área de produtos e serviços farmacêuticos9 . Esta área compreende os estabelecimentos em que se tem a presença de medicamentos ou de serviços relacionados com a profissão farmacêutica, como laboratórios de análises clínicas, por exemplo. Outros estabelecimentos que não têm relação direta com a área de produtos e serviços farmacêuticos, como: instituições de longa permanência para idosos (ILPI), comércio de produtos naturais, home care , ambulância, distribuidor de cosméticos, mercadinho, boteco, feira livre, comércio de alimentos, denominados neste estudo de estabelecimentos multidisciplinares, foram incluídos em decorrência da possibilidade de identificação de venda ilegal de produtos farmacêuticos.
As ações de fiscalização foram decorrentes de planejamento como o Plano Anual de Fiscalização Sanitária (PAF-Visa) e motivadas por denúncias ou por outros motivos, como para a renovação do licenciamento sanitário municipal.
As variáveis do estudo incluem as informações retiradas das notificações e autos de infração cadastrados no sistema Fiscalize, no qual são identificados: o tipo de estabelecimento; a data da ocorrência; o local (bairro) da ocorrência; as não conformidades encontradas (situações que destoam do previsto na legislação pertinente); a fundamentação legal para o enquadramento das não conformidades ou dispositivo legal infringido; o número e o tipo de documento gerado (auto ou notificação).
Os dados foram coletados no sistema Fiscalize, que produz um resultado tipo tabela, com 20 itens por página de tela contendo: o título das colunas, o número do auto, a pessoa da demanda (o estabelecimento inspecionado), a classificação do grupo, a data da autuação, o prazo para apresentar a defesa, o tipo de autuação e os anexos.
Esses dados foram estratificados em notificados ou autuados e categorizados por tipo de estabelecimento, bairro e data de ocorrência, não conformidade constatada e legislação utilizada na fundamentação. Eles foram compilados numa planilha Excel da Microsoft® 2016, fazendo uso de tabelas dinâmicas com os resultados expressos em frequências absolutas e relativas.
Por se tratar de informações proveniente de banco de dados restrito ao serviço, sem acesso para o público, conforme prevê Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), via Plataforma Brasil e foi aprovado conforme o parecer substanciado nº 3.578.158 e CAAE 20153119.6.0000.5054.
No período do estudo foram obtidas informações de 614 estabelecimentos, sendo que 127 (20,70%) deles foram reinspecionados. O percentual de fiscalização, no período do estudo, atingiu 15,40% (n = 185), em 2018, e 35,7% (n = 429), em 2019, considerando os 1.201 estabelecimentos existentes no município no início da pesquisa. No geral, contabilizou-se 948 inspeções e foram constatadas 2.830 não conformidades, das quais 2.445 (86,40%) resultaram em notificações e 385 (23,60%) em autuações.
Na Tabela 1 , pode-se observar que as drogarias foram os estabelecimentos mais fiscalizados (68,40%), resultando em 666 (70,20%) inspeções e 2.015 (71,20%) não conformidades.
Na Tabela 2 , observa-se que, no universo das drogarias, 1.755 (71,80%) inadequações foram notificadas e 260 (67,50%) delas foram autuadas.
Dos 119 bairros da cidade de Fortaleza, 100 (84,00%) foram fiscalizados no período do estudo. Os 11 bairros que tiveram o maior número de estabelecimentos inspecionados foram: Centro (n = 44; 7,20%), os bairros nobres Aldeota (n = 41; 6,70%) e Meireles (n = 18; 3,00%) e os bairros da periferia Messejana (n = 23; 3,70%), Parquelândia (n = 20; 3,30%), Jóquei Clube (n = 19; 3,10%), Presidente Kennedy (n = 18; 3,00%), Rodolfo Teófilo (n = 13; 2,12%), Passaré (n= 13; 2,10%), Fátima (n = 18; 3,00%) e Antônio Bezerra (n = 14; 2,30%).
As maiores frequências de inspeções e de não conformidades, que resultaram em maiores percentuais de autuações, ocorreram na Parquelândia (63 inspeções resultaram em 182 não conformidades), Rodolfo Teófilo (57 inspeções resultaram em 165 não conformidades), Centro (52 inspeções resultaram em 142 não conformidades), Aldeota (41 inspeções resultaram em 130 não conformidades), Jóquei Clube (40 inspeções resultaram em 110 não conformidades) e Antônio Bezerra (36 inspeções resultaram em 123 não conformidades). Esses bairros deram conta de 30,10% do total de inspeções e 30,10% do total de não conformidades.
Na Tabela 3 são apresentadas as 22 não conformidades mais frequentes e superiores a 1,00%, perfazendo 85,90% do total resultante, e suas distribuições por autuações e notificações. A inexistência de documentação sanitária obrigatória (n = 491; 17,30%), o armazenamento inadequado de produtos (n = 226; 8,00%) e a inadequação estrutural (n = 213; 7,50%) foram os itens mais frequentes.
Entre as dez não conformidades mais frequentes, quatro carregam consigo estreita relação com a dispensação de medicamentos, pois incluem: o atraso nas movimentações do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados – SNGPC (n = 157; 5,50%), a inexistência do comprovante de conferência dos mapas de medicamentos controlados (n = 146; 5,20%), a dispensação de antimicrobianos em desacordo com a legislação vigente (n = 99; 3,50%) e a necessidade de treinamento sobre a rotina de trabalho (n = 11; 3,90%).
As não conformidades constatadas nas drogarias (n = 2.015; 71,20%) incluem, de maneira geral, os seguintes problemas: na infraestrutura física e condições ambientais (n = 612; 30,40%), no recebimento, armazenamento e dispensação de produtos (n = 476; 23,60%), na documentação (n = 347; 17,20%), com relação aos medicamentos sujeitos a controle (n = 335; 16,60%) e aos serviços farmacêuticos (n = 153; 7,60%), no ambulatório (n = 27; 1,40%) e outros (n = 64; 3,20%).
No comércio atacadista de medicamentos, as não conformidades constatadas (n = 180; 6,30%) referem-se aos seguintes problemas: infraestrutura física e condições ambientais (n = 73; 40,60%), documentação (n = 58; 32,20%), armazenamento (n = 43; 16,10%), expedição (n = 13; 7,20%) e outros (n = 7; 3,90%).
Com relação aos postos de coleta laboratorial, as não conformidades constatadas (n = 216; 7,60%) incluem, de maneira geral,os seguintes problemas: infraestrutura física e condições ambientais (n = 67; 31,00%), documentação (n = 64; 29,60%), saúde e segurança do trabalhador (n = 21; 9,70%), capacitação profissional (n = 11; 8,00%), condições de saneamento e gerenciamento de resíduos (n = 17; 5,10%), procedimentos operacionais padrão (n = 7; 3,20%) e outros (n = 29; 13,40%). Já nos laboratórios de análises clínicas (n = 145; 5,10%), os problemas identificados foram: na infraestrutura física e condições ambientais (n = 59; 40,70%), na documentação (n = 48; 33,10%), saúde e segurança do trabalhador (n = 10; 7,00%), nas condições de saneamento e gerenciamento de resíduos (n = 6; 4,10%), na capacitação profissional (n = 4; 2,70%), nos procedimentos operacionais padrão (n = 3; 2,10%) e outros (n = 15; 10,30%).
No comércio atacadista de produtos para a saúde (n = 88; 3,10%), os problemas foram relativos: à infraestrutura física e condições ambientais (n = 36; 40,90%), à documentação (n = 31; 35,20%), ao armazenamento (n = 8; 9,10%), à expedição (n = 5; 5,70%),ao recebimento (n = 3; 3,40%) e outros (n= 5; 5,70%). Já no comércio varejista (n = 114; 4,00%): infraestrutura física e condições ambientais (n = 61; 53,50%), documentação (n = 31; 27,20%), armazenamento (n = 12; 10,50%), recebimento (n = 2; 1,80%) e outros (n = 8; 7,00%).
No que diz respeito ao transporte de medicamentos (n = 32; 1,10%), as não conformidades foram relativas: à infraestrutura física e às condições ambientais (n = 13; 43,30%), à documentação (n = 11; 36,70%), ao local de armazenamento dos medicamentos (n = 4; 13,30%) e ao veículo utilizado no transporte (n = 2; 6,70%).
Na Tabela 4 , pode-se observar as frequências das não conformidades constatadas em outros estabelecimentos: foram encontradas 11 tipos e constatadas 40 não conformidades.
Os dispositivos legais infringidos estão elencados na Tabela 5 . Constata-se que a RDC Anvisa/MS nº 44, de 17 de agosto de 2009, foi utilizada com uma frequência bem superior à segunda colocada, que foi a Portaria Municipal nº 18, de 13 de maio de 2003. Das dez legislações mais utilizadas para tipificar as inadequações constatadas no período do nosso estudo, quatro são referentes às drogarias. São elas: a RDC Anvisa/MS nº 44/2009, a Portaria Federal/MS nº 344, de 12 de maio de 1998, a RDC Anvisa/MS nº 22, de 29 de abril de 2014 e a RDC Anvisa/MS nº 20, de 5 de maio de 2011.
O desenvolvimento do presente trabalho possibilitou traçar um diagnóstico situacional das ações de fiscalização em Visa na área de produtos e serviços farmacêuticos, entre 2018 e 2019, no município de Fortaleza, Ceará. Uma possível limitação situa-se no fato de que um dos autores labora na fiscalização sanitária do município analisado neste estudo. Teve, assim, que empreender esforço para afastar as impressões pessoais da análise lógica perante os resultados constatados.
Houve, ainda, um aumento do registro das atividades de 2018 para 2019. Isso ocorreu porque 2018 foi o ano de início (de fato) da implantação do sistema Fiscalize, havendo sensibilização dos operadores para o uso da nova ferramenta e a expertise do processo de trabalho parecia incipiente naquele momento.
No geral, as drogarias corresponderam a maioria dos estabelecimentos fiscalizados. Entretanto, constata-se que os nove tipos de estabelecimentos menos inspecionados, exceto transportador de material biológico e depósito de medicamentos, trata de inspeções em atividades sujeitas à Visa, que não são exclusivas da área objeto desse estudo. São as chamadas inspeções multidisciplinares, em que há a participação também da área de produtos e serviços farmacêuticos, quando se constata a existência ou suspeita da presença de medicamentos nestes locais ou quando existem denúncias de atividades ilegais envolvendo medicamentos.
O grupo multidisciplinar é composto por: ILPI, comércio de produtos naturais, home care , mercadinho, ambulância, comércio de alimentos, boteco, feira livre e distribuidora de cosméticos. Apesar do baixo percentual, não se pode desconsiderar a importância das intervenções realizadas nesse grupo, pois as atividades desenvolvidas por eles implicam alto potencial de danos à saúde da população exposta. Conforme sustentado pelo grupo de trabalho (GT) do Comitê Tripartite da Visa – Anvisa, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) – na categorização das ações de Visa, o risco sanitário não está diretamente relacionado com a complexidade vertical (alta ou baixa) das ações, mas pode estar aumentado nas ações de baixa complexidade9 .
Nos casos que envolveram mercadinho, comércio de produtos naturais, feira livre, boteco e distribuidora de cosméticos, não houve sequer uma notificação, todos foram autuados de pronto, o que aponta para a constatação de alto risco sanitário. Para esses casos, a legislação sanitária prevê, também, a interdição cautelar como medida de mitigação dos riscos10 .
Como o risco sanitário é uma incerteza previsível de um evento indesejado, que pode assumir significados qualitativos e quantitativos11 , podendo, do ponto de vista epidemiológico, causar dano à uma determinada população12 , o acompanhamento mais frequente das atividades desses estabelecimentos que apresentaram alto percentual de autuação torna-se uma obrigatoriedade para a Visa. Portanto, faz-se necessária a atuação conjunta com outros atores e órgãos que possam contribuir para a redução desses riscos, como o Ministério Público, a Vigilância Epidemiológica e órgãos de segurança pública5 .
As ações sanitárias do período em estudo foram, predominantemente, de natureza orientativa, pois o percentual das notificações se mostrou bem superior ao das autuações, evidenciando uma ação fiscalizatória menos policialesca, em consonância com as diretrizes do Relatório da Conferência Nacional de Vigilância Sanitária de 200113 . Esse parece ser procedimento comum em outras localidades, onde o percentual de intervenções de natureza técnica educativa diante das irregularidades identificadas foi de aproximadamente 93%14 .
A distribuição geográfica das inspeções do estudo apresentou um panorama que deve ser muito bem analisado, quando da elaboração das rotas e no planejamento das operações direcionadas aos fiscais, já que nos bairros periféricos houve maior concentração de não conformidades autuadas em comparação com áreas mais nobres da cidade, com maior concentração de estabelecimentos comerciais. Uma possível explicação para isso pode ser o fato de a Secretaria Regional III, que inclui bairros como Parquelândia, Rodolfo Teófilo, Jóquei Clube, Antônio Bezerra, Presidente Kennedy, Henrique Jorge e João XXIII, ter sido um polo do experimento piloto de implantação do registro das ações no sistema Fiscalize, no segundo semestre de 2017. Com isso pode ter havido maior adesão dos servidores e, consequentemente, maior registro das ações realizadas a partir de 2018 sendo respondidas no Fiscalize, período no qual algumas regionais ainda não realizavam todo o procedimento nesse sistema.
Essa tendência observada aponta para conclusão de que inspecionar muito não significa reduzir riscos, pois a região do município com maior quantidade de estabelecimentos inspecionados e maiores percentuais de inspeções realizadas não foi a que apresentou maior frequência de não conformidades autuadas, pois os maiores riscos estiveram presentes na região periférica e menos visitada pelas equipes de fiscalização. Portanto, a frequência da inspeção pode gerar maior zelo procedimental por parte do setor regulado. Consequentemente, deve-se aumentar o número das inspeções nas áreas mais periféricas do município, implantando a cultura do cuidado na redução de riscos, para se obter maior nível de adequação sanitária em produtos e serviços prestados à população.
Há precedentes teóricos na literatura sanitária para reforçar uma priorização de ações. Navarro et al.15 afirmaram a necessidade de se fazer um planejamento de intervenções que atinja os serviços de maior risco, abrindo mão da inspeção anual de estabelecimentos de baixo risco para melhorar o controle sanitário do sistema. Entretanto, o presente trabalho demonstrou o contrário: os estabelecimentos de baixo risco podem ser os que menos cumprem as normas sanitárias e os que mais põem em risco a saúde das pessoas.
As não conformidades constatadas nas drogarias encontram semelhança com os achados por Costa et al.16 quando analisaram a situação sanitária dos medicamentos na atenção básica do SUS, no qual observou-se que a infraestrutura física e as condições de armazenamento dos medicamentos se apresentaram insuficientes, principalmente nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil. Contudo, nosso trabalho diferiu desse estudo em relação à documentação sanitária, pois, no nosso caso, as não conformidades sobre esse aspecto somaram apenas 17,20%, enquanto no estudo de Costa et al.15 esta dimensão variou de 6,00% a 24,00%.
Percebe-se, também, semelhança com os resultados encontrados por Bastos et al.17 na inspeção de farmácias na capital baiana. Esses autores observaram que os técnicos deram maior ênfase aos itens relacionados com a infraestrutura, as condições sanitárias das instalações e a existência do certificado de controle de pragas.
Em estudo sobre as penalidades aplicadas às farmácias (distintas das drogarias), em Goiânia, foi constatado que 58,4% delas sofreram pelo menos uma multa e que 29,2% das multas tiveram como motivo o aviamento de receita em desacordo com a Portaria Federal nº 344/1998, e/ou as RDC da Anvisa nº 58, de 5 de setembro de 2007, e nº 52, de 6 de outubro de 201118 .
Quanto ao comércio atacadista de medicamentos, que é comumente chamado de distribuidor de medicamentos, se constatou que o item infraestrutura física e condições ambientais foi o mais frequente. Esse aspecto pode provocar risco potencialmente alto e gradual na qualidade dos medicamentos, pois armazenamento é uma etapa crítica que deve garantir a qualidade e a guarda segura dos produtos, evitando danos físicos, furtos, roubos, conservação, controle de estoque, contribuindo para uma distribuição correta e racional de medicamentos e garantindo agilidade e gerenciamento adequado da distribuição19 .
No comércio atacadista, o item documentação traz embutido consigo um tipo de documento que tem alto potencial de danos à saúde individual e coletiva, pois se o distribuidor não exigir a apresentação da documentação sanitária do seu cliente, quando este não está autorizado para a atividade, esse distribuidor poderá estar contribuindo para a comercialização ilegal desses produtos, já que quem não está legalizado não é visível para os órgãos de fiscalização e controle.
Ademais, os medicamentos que tiveram suas cargas roubadas acabam tendo como destino farmácias ilegais, outros distribuidores ou sendo vendidos pela internet20 . Esta pode ser também a explicação para a existência dos medicamentos encontrados nas feiras livres, bares e mercadinhos dentro do município de Fortaleza, conforme constatado no presente estudo.
Martins e Galato21 , pesquisando sobre as notificações e as medidas sanitárias das irregularidades dos medicamentos comercializados no Brasil, entre 2012 e 2017, encontraram que esses produtos somaram 38,5% entre todas as ocorrências notificadas no período (medicamentos, produtos para saúde, saneantes, cosméticos, sangue e hemocomponentes). Constataram também que, dentre os estabelecimentos que responderam pelas medidas de interesse sanitário do período, estavam os importadores e os distribuidores de medicamentos.
Quanto aos laboratórios de análises clínicas e ao posto de coleta laboratorial, a infraestrutura física e a documentação foram os aspectos que figuraram entre os mais frequentes. O item documentação engloba o licenciamento sanitário, a certidão de responsabilidade técnica e a comprovação das manutenções e as calibrações dos equipamentos.
Os resultados aproximam-se ao do estudo realizado por Navarro et al.15 , no estado da Bahia, que analisou o controle de risco nos serviços de radiodiagnóstico no qual, em 10% dos estabelecimentos, não havia responsável técnico e os equipamentos e práticas eram inadequados em 68% dos procedimentos.
No item saúde e segurança do trabalhador, constatou-se uma ocorrência relacionada com falta de equipamento de proteção individual (EPI) e nenhuma relacionada com equipamento de proteção coletiva (EPC). Este resultado é diferente do encontrado por Batista e Nascimento22 que, analisando os laboratórios de análises clínicas no município de Campina Grande-PB, constataram que a falta de EPI, por parte dos trabalhadores, somou 20%.
As ocorrências quanto aos controles de qualidade interno e externo, como integrante do procedimento operacional padronizado (POP), foram poucas, podendo significar que a maioria dos inspecionados realizavam esses controles. Resultado semelhante foi observado no trabalho de Gonçalves et al.23 , em que aproximadamente 76% dos registros sobre o tema apresentavam informações quanto à existência de controles de qualidade realizados pelos laboratórios acompanhados naquele estudo. Nessa seara de controle de qualidade, Pessoa e Ferreira24 ressaltaram que o uso de materiais e de métodos certificados interferem na exatidão dos resultados liberados pelo laboratório clínico, podendo comprometer a segurança na interpretação dos resultados.
O item outros, nesses dois grupos, refere-se, majoritariamente, à inexistência de análise microbiológica da água utilizada por esses tipos de estabelecimentos.
As não conformidades relacionadas com o gerenciamento de resíduos, que estão presentes tanto nos laboratórios clínicos (4,00%) quanto nos postos de coleta laboratorial (5,00%), também foram encontradas nos trabalhos de Batista e Nascimento22 , em menor frequência (0,8%) e de Giraldelo et al.25 , que observaram inexistência total de gerenciamento e descarte adequado de resíduos químicos e da capacitação dos funcionários quanto aos riscos no manuseio de produtos químicos por laboratórios de anatomia patológica.
A falta de estrutura adequada pode interferir diretamente na qualidade dos itens comercializados, por isso as ações de Visa nessas empresas podem contribuir para diminuição do risco relacionado a produtos para saúde26 .
O item documentação, tanto para o comércio atacadista quanto o varejista de produtos para saúde, contempla a licença sanitária, a autorização de funcionamento de empresa (AFE), a certidão de responsabilidade técnica, o cadastro de fornecedores e a lista de produtos comercializados, o contrato com terceiro prestador de serviço e os POP.
A boa procedência dos produtos comercializados é garantida pela qualificação dos fornecedores e pela comprovação de registro dos produtos no órgão sanitário competente. A esse respeito, Nascimento27 , ao avaliar os indeferimentos de registros de dispositivos médicos de alto risco, constatou que, em muitos casos, o motivo deu-se por falta de documentos que comprovassem a segurança para os usuários e a eficácia para uma determinada condição clínica. Ele sustenta que essa ausência pode trazer prejuízos aos pacientes por impedir a utilização de uma outra intervenção mais apropriada para a enfermidade.
As ocorrências relacionadas com o recebimento e a expedição foram sobre a necessidade de identificação dessas áreas. Em relação ao armazenamento, a não conformidade foi a temperatura acima da recomendada pelos fabricantes. Os resultados são semelhantes aos encontrados por Braga et al.26 , que avaliaram as boas práticas de distribuição e importação de produtos para saúde de empresas do município de Curitiba. Estes pesquisadores apuraram que 34% das empresas apresentavam não conformidades em relação à estrutura física, 28% por falta de organização e 18% não apresentaram sistema de rastreabilidade de produtos. Esses três itens estão embutidos no presente trabalho, na descrição de infraestrutura, somando no caso do comércio atacadista 41,00% e do comércio varejista 54,00%.
A importância de se trabalhar a exigência de que os estabelecimentos adquiram sistemas que permitam a rastreabilidade é muito bem descrita no trabalho de Morais et al.28 . Para os autores, o simples atraso da notificação de queixa técnica ou de um evento adverso no Sistema Notivisa pode comprometer as práticas sanitárias e gerar risco para a saúde humana. Neste contexto, se as empresas não dispuserem de sistemas que permitam a rastreabilidade dos produtos notificados, poderá haver uma ruptura na cadeia de ações destinadas a promover a proteção à saúde, tão bem definida no conceito brasileiro de Visa.
Dentre os estabelecimentos multidisciplinares, as ILPI aparecem como as que mais tiveram inadequações constatadas. As não conformidades contabilizadas neste trabalho referem-se, principalmente, ao armazenamento inadequado de produtos e à inexistência de equipamento ou instrumento necessário à atividade desenvolvida.
Os resultados da pesquisa quanto à ILPI evidenciam a necessidade de uma atuação mais frequente, uma vigilância mais constante por parte do poder público a estas instituições. No município de Fortaleza, várias inspeções foram motivadas por ofícios do Ministério Público Estadual, que acompanhou as inspeções por meio da presença de procuradores interessados na temática da proteção ao idoso29 .
Os transportadores de material biológico aparecem como o segundo mais frequente desse grupo em termos de inadequações constatadas. Esses transportadores conduzem materiais humanos como sangue e hemoderivados, peças anatomopatológicas e outros itens, dos seus postos de coleta até o laboratório de apoio que realiza as análises. As não conformidades observadas nesse tipo foram de natureza documental e relacionadas com a inspeção dos veículos utilizados no transporte.
Das dez legislações mais utilizadas para tipificar as inadequações, quatro são referentes às drogarias, o que coincide com o fato de elas serem os estabelecimentos mais visitados pelos fiscais da Visa. O fato de a Portaria Municipal nº 18/2003 aparecer na segunda posição de frequência não surpreende, porque ela se refere tanto ao laboratório clínico quanto aos postos de coleta laboratoriais.
Apesar das várias legislações municipais utilizadas pela fiscalização, o município de Fortaleza ainda não dispõe de Código Sanitário Municipal e desde 1981 embasava suas ações sanitárias (além das Leis Federais) pelo Código de Obras e Posturas que veio a ser substituído pelo Código da Cidade (Lei Complementar nº 270, de 2 de agosto de 2019). A prática de usar o Código Municipal de Postura na falta do Código Sanitário também foi observada em um município do recôncavo baiano30 .
Por fim, o uso de dados secundários representou uma limitação do estudo, pois o registro dos dados ocorreu de forma manual e coincidiu com os primeiros anos de implementação do sistema Fiscalize, existindo, portanto, a possibilidade de falhas na introdução das informações ou não registro de ocorrências, apesar da obrigatoriedade no preenchimento. As informações também estão restritas aos anos de 2018 e 2019, início da utilização do sistema, o que impossibilitou fazer comparações com outros anos. Apesar disso, o sistema forneceu dados oficiais, sistematizados, que permitiram traçar um diagnóstico da situação.
Os percentuais de notificações e autuações apontaram para uma tendência de atuação nos procedimentos fiscalizatórios, em sua maioria, para sensibilizar os responsáveis pelos segmentos regulados no sentido de promoverem melhorias técnicas e adequações legais.
Embora haja pequenas diferenças percentuais de resultados das autuações em comparação com outros trabalhos, pode-se afirmar que a atuação dos agentes na fiscalização sanitária seguiu os padrões sanitários observados em outros municípios brasileiros. Esse aspecto tomou como ponto de partida de análise que as situações de menor risco (notificadas) foram tratadas como orientações para melhorias de condutas, pois não ensejaram intervenções mais drásticas como autuações e interdições.
Como país continental, o Brasil deve fomentar estudos que retratem a realidade sanitária dos seus outros grandes municípios pois, conhecendo as ações realizadas e seus resultados, pode incentivar o planejamento direcionado de intervenções que resultem na oferta de produtos e serviços de melhor qualidade para seus cidadãos.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
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