RESUMO
Introdução: A crescente exposição humana a agrotóxicos é uma preocupação para a Saúde Pública internacional.
Objetivo: Avaliar os dados de intoxicação humana por agrotóxicos levantados na macrorregião de saúde do Vale do Itajaí, no período de 2014 a 2018.
Método: Realizou-se um estudo descritivo transversal de dados secundários por meio dos sistemas de informações em saúde de notificação compulsória mortalidade e internação hospitalar.
Resultados: Os resultados mostraram que o perfil das intoxicações exógenas por agrotóxicos tem predominância de adultos do sexo masculino, com baixa escolaridade, expostos a agrotóxicos de uso agrícola, com exposição aguda-única, e que a maioria dos casos ocorreu nas residências e evoluiu para uma cura sem sequelas. Constatou-se, também, a predominância de intoxicações por circunstâncias acidentais e não relacionadas ao trabalho, confirmando suspeitas da qualidade do preenchimento das notificações. Acerca dos efeitos prejudiciais à saúde humana relacionados à manipulação de agrotóxicos, evidenciou-se a sua manifestação, predominantemente, nos sistemas digestório, respiratório e neurológico, do corpo humano.
Conclusões: Diante do cenário de extrema vulnerabilidade da população da macrorregião de saúde do Vale do Itajaí às doenças e agravos associados ao uso de agrotóxicos, diretrizes regulatórias e legislações mais restritivas são urgentes.
Palavras chave: Agrotóxicos, intoxicação, saúde Pública, sistemas de Informação.
ABSTRACT
Introduction: Increasing human exposure to pesticides is an international public health concern.
Objective: To evaluate the toxic effects of pesticides on humans based on data collected in the administrative health macro-region of Vale do Itajaí, Brazil, from 2014 to 2018.
Method: A descriptive cross-sectional study was developed, using secondary data from national health information systems, focusing on notifiable diseases, mortality, and hospital admission.
Results: The results showed that the profile of exogenous pesticide poisoning has a predominance of male adults, with low education level, exposed to agricultural pesticides, with acute single exposure, where most cases occurred at home and were cured without sequelae. There was also observed a predominance of poisoning due to accidental and non-work-related circumstances that confirms the suspicions of the quality of filling in the notifications. The harmful effects of handling agrochemicals on human health were mainly manifested in the digestive, respiratory, and neurological systems.
Conclusions: In view of the extreme vulnerability faced by the population of Vale do Itajaí health macro-region to diseases and injuries associated with the use of pesticides, as well as the Brazilian population as a whole, it was concluded that regulatory guidelines and more restrictive legislation is urgently demanded.
Keywords: Pesticides, poisoning, public Health, information Systems.
ARTIGO
Intoxicações por agrotóxicos em uma macrorregião de saúde em Santa Catarina, Brasil, no período de 2014 a 2018
Pesticides poisoning in a health macro-region in Santa Catarina, Brazil, from 2014 to 2018
Recepção: 07 Novembro 2022
Aprovação: 06 Março 2023
O uso de agrotóxicos desempenha um papel fundamental no atual modelo hegemônico de produção agrícola desde a Revolução Verde do século XX. O uso global destes produtos tem aumentado constantemente nas últimas décadas para o controle de pragas e vetores de doenças1 . O modelo de desenvolvimento vigente no país privilegia o uso de agrotóxicos e a produção de commodities agrícolas e minerais, com processos produtivos que geram enormes impactos socioambientais2 .
A exposição aos agrotóxicos pode causar uma série de doenças e agravos à saúde, dependendo do produto utilizado, tempo de exposição e quantidade absorvida pelo organismo3 . A Portaria nº 777, de 28 de abril de 2004, que dispõe sobre os procedimentos técnicos para a notificação compulsória de agravos à saúde do trabalhador em rede de serviços sentinela específica, inclui as intoxicações exógenas por agrotóxicos4 .
A intoxicação exógena representa a manifestação clínica e/ou bioquímica da exposição a substâncias químicas como os agrotóxicos. Essas intoxicações podem ser expressas pelos efeitos agudos ou crônicos à saúde. Muitos agravos têm efeito agudo, ou seja, quando há a exposição ao princípio ativo (ou agrotóxico) em doses altas e uma única vez. Entretanto, muitas doenças, como o câncer, referidas em estudos e documentos, caracterizam os efeitos crônicos, quando a exposição ao agrotóxico ocorre repetidas vezes e em doses baixas5 .
O Brasil destaca-se como um dos maiores consumidores de agrotóxicos, como resultado do desenvolvimento do agronegócio6 . Durante 2019, um total de 562 novos produtos foram aprovados no país e cerca de um terço desses produtos contém substâncias ativas proibidas ou severamente restritas pela European Chemicals Association7 , 8 . Em 2021, a comercialização de agrotóxicos no Brasil, chegou a 719,05 mil toneladas e apresenta crescimento anual7 . A tendência crescente de comercialização e permissão de agrotóxicos ao longo dos anos é preocupante devido às intoxicações ocasionadas pela exposição a estes produtos6 , 9 . O reconhecimento destes riscos tem como resposta do Sistema Único de Saúde (SUS) a adoção de medidas de promoção da saúde, prevenção e atenção integral das populações expostas a agrotóxicos10 .
Os Sistemas de Informação em Saúde (SIS) atuam na formulação e avaliação das políticas, planos e programas de saúde e, dessa forma, subsidiam o processo de tomada de decisões. A notificação é a principal fonte de morbidade para detectar os casos, instituir medidas de controle e fortalecer o Sistema de Vigilância em Saúde.
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Santa Catarina (SC), junto com o estado do Rio Grande do Sul, tem o maior percentual de propriedades rurais que utilizam agrotóxicos (70%) em relação à média nacional (32%). Isso representa 129.372 estabelecimentos rurais11 . Dentre as publicações mais recentes da Diretoria de Vigilância Epidemiológica do Estado (DIVE) destaca-se o crescente uso de agrotóxico no estado, em 2018, as intoxicações concentraram-se nas regiões de saúde do Oeste, Planalto, Vale do Itajaí e Grande Florianópolis. Os municípios que tiveram o maior número de casos na macrorregião estudada foram Rio do Campo (18) e Ibirama (11)12 . A escolha da macrorregião do Vale do Itajaí deu-se pela sua colocação em termos de incidência e pela localização do campus Alto Vale da Universidade do Estado de Santa Catarina nesta macrorregião.
Segundo informações disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 2019, foram vendidas 12.442,98 toneladas de ingrediente ativo no estado de Santa Catarina7 . Além disso, ações de vigilância e fiscalização são necessárias nos municípios, já que os dados acerca do elevado volume de venda destes produtos revelam um alto risco de exposição aos agrotóxicos por parte dos agricultores e as informações das consequências do uso extensivo destes produtos na região são escassas. O presente trabalho teve como objetivo avaliar os dados de intoxicação humana por agrotóxicos levantados na macrorregião de saúde do Vale do Itajaí em SC, no período de 2014 a 2018.
O presente trabalho trata-se de um estudo descritivo transversal, de dados secundários, referente ao registro dos casos de intoxicação por agrotóxicos registrados no período de 2014 a 2018 na macrorregião de saúde do Vale do Itajaí, do estado de SC, Brasil.
As notificações foram obtidas da base nacional do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) por meio da ferramenta Tabnet, software gratuito desenvolvido pelo DATASUS, mediante acesso à página de rede da DIVE (SC). Por estar vinculado à Secretaria de Saúde do Estado de Santa Catarina (SES/SC), o sistema Tabnet – DIVE (SC) apresenta dados atualizados, disponíveis em um banco gerado a partir da junção das informações constantes nas fichas de notificação e investigação específicas para o agravo.
Dados relacionados à ocorrência de intoxicações exógenas causadas por agrotóxicos podem ser registrados em casos de atendimentos clínicos ambulatoriais e hospitalares, internações hospitalares e óbitos. Por esta razão, diversos SIS atuam na identificação do perfil epidemiológico dos casos de intoxicações exógenas por agrotóxicos como: Sinan, Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina (CIATox/SC), Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e no Sistema de Informações Hospitalares (SIH).
As notificações relacionadas ao banco do CIATox/SC não possuem livre acesso e foram solicitadas à coordenação do serviço. Durante o atendimento, esse serviço é o único que coleta dados a respeito dos sintomas, por essa razão as informações foram extraídas dessa base. O registro do CIATox/SC é proveniente dos atendimentos telefônicos, por meio do serviço de 0800, para o atendimento de intoxicações agudas com sinais e sintomas presentes. Nos registros do Sinan, o caso é notificado diretamente pelo profissional durante ou após o atendimento utilizando a ficha de intoxicação exógena. Os dados utilizados foram obtidos sem a identificação do paciente, em base de dados secundários, por isso não houve submissão do trabalho ao Comitê de Ética em Pesquisa. Em ambas as bases se trabalhou com dados correspondentes ao período entre 1o de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2018. As consultas às bases foram feitas entre os meses de dezembro de 2019 e junho de 2020.
Para a macrorregião de saúde do Vale do Itajaí, no período de estudo foi registrado um total de 594 casos de intoxicação exógena por agrotóxico no Sinan e 640 casos no banco CIATox /SC ( Tabela 1 ). O ano em que mais casos foram notificados no CIATox/SC foi 2017, com 150 ocorrências. Pelo Sinan, o ano de 2018 apresentou o maior número de ocorrências totais com 167 casos registrados. A heterogeneidade do total de casos registrados nos dois sistemas demonstra a incompletude e as inconsistências nas informações. Isto deve-se ao fato de que, em alguns casos, o profissional de saúde atende, mas não realiza a notificação devido a falhas no diagnóstico, isto é, no caso de atendimento do paciente que apresenta sintomas e o profissional de saúde não caracteriza o caso como intoxicação exógena.
Em relação à subnotificação de intoxicações por agrotóxico, estima-se que, para cada evento, existam outros 50 não notificadas13 , 14 . Outra causa que pode levar à subnotificação é a falta de procura pelo serviço de saúde (hospital ou unidade básica de saúde, acionamento de emergência por meio do 0800). Portanto, os dados de morbimortalidade por agrotóxicos no país não refletem a realidade epidemiológica, pois estima-se que se trata de agravo subnotificado13 , 14 . Os resultados encontrados pela distribuição geral das frequências por grupo de variáveis estão apresentados na Tabela 1 .
Em relação às características das intoxicações no período e na região de estudo, revela-se que, para ambos os sistemas, a maioria dos registros corresponde ao sexo masculino. Estes resultados concordam com informações reportadas previamente em estudos desenvolvidos no Brasil15 , 16 , 17 . Apesar de a agricultura ser um ciclo familiar nestas pequenas comunidades agrícolas (característica presente em SC), onde todos os membros participam, os dados apontam que o trabalho na agricultura tem uma predominância masculina. Diferentemente do evidenciado no presente trabalho, Albuquerque et al.18 descreveram um predomínio do sexo feminino nas intoxicações por agrotóxicos no estado de Pernambuco. Enquanto Silva e Costa19 , que abordaram o total de intoxicação exógenas para o estado de SC (não somente as causadas por agrotóxicos), também concluíram que o sexo feminino foi predominante.
A população mais afetada pelas intoxicações associadas ao uso de agrotóxicos correspondeu à faixa etária de 20–49 anos, o que representa a população economicamente ativa. Resultado semelhante foi obtido por Malaspina et al.17 e Albuquerque et al.18 , o que estaria relacionado ao fato desta faixa etária ser caracterizada como a idade média dos trabalhadores em exercício no campo20 .
Os dados relativos à escolaridade apresentam alto número de casos ignorados/em branco, que corresponderam a 79,5% no CIATox/SC. A grande expressão desta categoria pode se dever ao fato de existirem falhas no preenchimento, já que, pela situação ser registrada telefonicamente, muitas vezes não é anotada pelo funcionário que abre a ficha, em reiteradas ocasiões por considerá-la de menor importância. Porém, o percentual mais elevado registrado pelo Sinan (46,3% dos casos notificados) refere-se a indivíduos de baixa escolaridade, com apenas ensino fundamental. De acordo com Bohner et al.21 e Tofolo et al.22 , a baixa escolaridade pode aumentar a insegurança na atividade laboral, pois dificulta o acesso a informações importantes, como a leitura de rótulos de produtos tóxicos.
Com relação à ocupação, observou-se, pelos registros do CIATox/SC, que a maioria das pessoas que tiveram intoxicação trabalha na agricultura (22,3%), concordando com o estudo de Albuquerque et al.18 . Apesar disso, o maior número de registros (350) correspondeu à categoria “outras ocupações”, o que se deve ao agrupamento das variáveis. No banco do Sinan não há registros de ocupação, apenas da situação no mercado de trabalho, isto é, se existem situações de desemprego, aposentadoria ou se o empregado é registrado. Por esta razão, foi necessário agrupar as variáveis para maior organização, mas a análise ficou prejudicada já que um campo essencial da ficha de notificação do Sinan não foi preenchido.
Considerando as informações do Sinan, os municípios com maiores números de notificações de intoxicações da macrorregião de saúde analisada foram: Rio do Campo, Blumenau, Ibirama, Rio do Sul, Salete, Presidente Getúlio, Brusque e Indaial. No CIATox, destacam-se os municípios de Vidal Ramos, Trombudo Central, Timbó, Taió, Santa Terezinha, Salete, Rio dos Cedros, Rio do Sul e Rio do Oeste. Isso reforça a fragilidade nas informações que, apesar de utilizarem uma ficha de registro semelhante à da notificação por intoxicação exógena, têm a base de entrada do dado diferente, havendo um total de casos distinto entre ambas as bases. Esta divergência indica que os dados não migram do CIATox/SC para o Sinan, ação que o município que acionou o serviço 0800 deve fazer concomitantemente à notificação.
Analisando a origem das notificações, percebe-se que há uma divergência de dados entre os dois bancos em relação ao município notificante. No CIATox/SC, voltado para casos de maior risco (emergência pelo 0800), o município de Rio do Campo possui apenas 15 registros. Todavia, no Sinan, este município foi responsável por 184 (30,9%) notificações. Ao contrário, o município de Vidal Ramos foi responsável por 135 (22,1%) notificações no CIATox/SC contra apenas três registros no Sinan. Isto demonstra que os municípios de pequeno porte e de base agrícola, como Vidal Ramos (6.329 habitantes) e Rio do Campo (5.902 habitantes) precisam de maior atenção dos setores da agricultura e da saúde municipal e estadual. Afinal, as informações levantadas apontam um número excessivo de intoxicações causadas por agrotóxicos, indicando falta: de controle no uso destes agentes e/ou situação de vulnerabilidade; de utilização de equipamentos de proteção individual (EPI); e de conhecimento por parte dos agricultores sobre as normas e os cuidados necessários ao manuseio dos produtos químicos16 , 21 .
Em consideração ao perfil de morbidade ( Tabela 2 ), segundo as características da intoxicação, foram observadas diferenças importantes entre os dois sistemas. No Sinan, os agentes responsáveis pelo maior número de intoxicações são os agrotóxicos agrícolas (12,0%), seguido pelos agrotóxicos domésticos (3,1%), raticidas (2,5%) e produtos veterinários (0,4%). Na proporção da variável circunstância de uso de agrotóxicos, no Sinan, 86,0% dos casos de intoxicação foram acidentais e, no CIATox/SC, a maior proporção (38,4%) dos casos foi por tentativa de suicídio. Com relação ao tipo de exposição e ao local de exposição, há uma concordância entre os dados dos dois sistemas, sendo que a maioria das intoxicações ocorreram por exposição aguda-única e na residência. Em relação com o tipo, a exposição aguda (única) correspondeu a 74,6% e 88,1% dos casos, para o Sinan e o CIATOx/SC, respectivamente. Já em consideração ao local de exposição, a maioria das intoxicações ocorreu na residência (64,0 e 70,3%, de acordo com o Sinan e o CIATOx/SC, respectivamente), realidade que já foi observada no trabalho de Pires et al.15 . Em relação à circunstância em que ocorrem as intoxicações por agrotóxicos, de acordo com Faria et al.23 , a proporção relativa dos casos de tentativas de suicídio tende a ser menor em relação aos casos ocupacionais.
Os casos de exposição no ambiente de trabalho representam 30,3% e 20,6%, respectivamente, entre os sistemas de informação. Esse percentual está abaixo do esperado entre os notificados, visto que, ao lidarem diretamente com os agrotóxicos, esses trabalhadores se tornam mais vulneráveis. O estudo de Magalhães e Caldas24 descreveu casos de exposição ocupacional a produtos químicos, no Distrito Federal, entre 2009 e 2013, em que 219 (57,3%) trabalhadores sofreram intoxicação pela exposição aos produtos.
Observou-se que, para a variável via de exposição, os dados coletados no Sinan não geraram informações, devido ao alto percentual de notificações ignoradas ou em branco (64,6%) ( Tabela 2 ). A ausência de informações durante o preenchimento da ficha pode dificultar uma análise mais aprofundada da situação. Pelo CIATox/SC evidenciou-se que 50,6% das intoxicações notificadas ocorreram pela via digestiva. Isto associa-se ao fato de que a proporção relativa dos casos de suicídio gerou mais registros neste sistema e o preenchimento é mais fidedigno devido ao preenchimento da ficha de caso durante o atendimento telefônico pelo 0800. Com relação às vias de administração, os agrotóxicos causam sinais de alerta e sintomas bastante semelhantes, o que dificulta o reconhecimento (somente pelas manifestações clínicas) do agente causador da intoxicação. Além de que é comum o uso combinado de vários produtos, o que dificulta o manejo no atendimento da intoxicação exógena16 .
Em vista disto, identificou-se os sinais e sintomas registrados no CIATox/SC, que foram classificados de acordo com os sistemas do corpo humano ( Figura 1 ).
Os sinais e sintomas identificados com maior frequência estão relacionados ao sistema digestório (32,6%), respiratório (24,7%), neurológico (5,8%), tegumentar (4,2%), sensorial (1,6%), urinário (1,2%), endócrino (0,5%) e muscular (0,5%). Quanto ao adoecimento associado ao trabalho agrícola, os homens são os mais vitimados pelo suicídio, enquanto as mulheres são as mais atingidas por transtornos neurológicos20 . Para os casos mais fortemente relacionados ao sistema respiratório, ressalta-se a falta de utilização de EPI, predispondo a acidentes durante a manipulação de agrotóxicos20 .
Para um total de 640 atendimentos de intoxicações agudas obteve-se que 246 (38,4%) eram provenientes de tentativas de suicídio, este resultado se relaciona com o percentual de sinais e sintomas identificados para o sistema digestório, em que, por meio da ingestão o indivíduo introduz no organismo, de imediato, uma elevada concentração do composto alvo, podendo ser levado a óbito. Segundo Queiroz et al.25 , o acesso facilitado aos agrotóxicos no ambiente domiciliar está associado ao maior número de casos de tentativas de suicídio.
Outro local de exposição é o ambiente externo, que correspondeu a 2,7% e 5,8% dos registros no Sinan e no CIATox/SC, respectivamente. É relevante salientar que os agrotóxicos se tornam uma fonte de contaminação ao serem lançados no ambiente ou por meio de resíduos de agente químico em embalagens vazias que, sob ação da chuva, podem contaminar o solo, águas superficiais e subterrâneas26 .
Conforme a Tabela 2 , os casos, em sua maioria, resultaram em cura sem sequelas para 92,6% dos registros no Sinan e 95,5% no CIATox/SC. Para os casos de cura com sequelas obteve-se uma frequência relativa de 1,7% no Sinan e 1,1% no CIATox/SC. Tais valores apontam para os efeitos crônicos passíveis de notificação. Com relação ao óbito, os valores absolutos do Sinan e do SIM são correspondentes, mas o CIATox/SC apresentou um valor superior. Dessa forma, os bancos de dados apresentam muitas inconsistências, pois o SIM deveria contabilizar todos os óbitos devido ao registro destas informações na declaração de óbito.
Para as internações hospitalares, houve a identificação de 50,5% dos casos no Sinan e 21,4% no CIATox/SC, o que pode indicar a gravidade das intoxicações agudas. Entretanto, as inconsistências com relação ao SIH são ainda maiores, prejudicando a análise.
Segundo Rebelo et al.27 , a facilidade para se obter os agrotóxicos e a sua variabilidade no mercado contribuem para a alta incidência de intoxicações. Apesar da compra de agrotóxicos ocorrer mediante receituário agronômico, prescrito por profissionais da área, muitas vezes falta instrução aos usuários sobre o manejo seguro dos produtos. Isto ressalta a importância do uso de EPI para minimizar o risco e diminuir a ocorrência de intoxicações e outros acidentes de trabalho. De acordo com as leis trabalhistas, esses equipamentos devem ser fornecidos pelo empregador28 .
Considerando as atividades efetuadas no momento da intoxicação, de acordo com os dados do Sinan, conclui-se que a maior exposição aos agrotóxicos ocorre na fase de colheita (27,7%), seguida da pulverização (17,5%) e da diluição do produto (14,4%), mas os dados ainda apresentam incompletude (28,6%) ignorados/em branco ou não se aplica ( Figura 2 ).
De acordo com registros no CIATox/SC, foram descritos os principais agrotóxicos envolvidos nas intoxicações (em dez ou mais casos) e as consequências para a saúde humana ( Quadro ). Esta análise não foi aplicada ao Sinan pela ausência de identificação do produto (nome comum) no banco de dados.
Com exceção do paraquate, os outros três herbicidas destacados por serem responsáveis por dez ou mais casos de intoxicações na região de estudo são permitidos no Brasil. Este produto não é permitido na União Europeia34 e seu uso é restrito nos Estados Unidos da América (EUA)35 . Para os herbicidas 2,4-D, diurom e glifosato, as permissões são discordantes já que esses produtos são permitidos na União Europeia34 , enquanto nos EUA encontram-se sob um processo de revisão de registro para garantir que atendam aos padrões científicos e regulamentares atuais35 .
O herbicida glifosato foi o agrotóxico mais citado (194 casos) nos registros. No Brasil, 217.592,24 toneladas de glifosato e seus sais foram vendidos em 20197 . Destaca-se também o fato de este produto ter sido elencado entre os agrotóxicos cancerígeno para humanos, devido aos mecanismos de genotoxicidade e estresse oxidativo evidenciados, e as evidências limitadas para linfomas não Hodgkin (LNH), por uma subdivisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) constituída por especialistas na área de toxicologia30 . Entretanto, organizações como a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) e a Organização Conjunta para Alimentos e Agricultura (FAO), na Reunião da OMS sobre Resíduos de Agrotóxicos (JMPR) determinaram que era improvável que o glifosato representasse um risco cancerígeno para humanos36 , 37 . Em 2017, a agência de proteção ambiental dos EUA (EPA) também classificou o glifosato como provavelmente não carcinogênico para seres humanos32 . Já em 2020, este órgão emitiu uma decisão provisória para revisão do registro na qual continua manifestando que não há riscos de preocupação para a saúde humana quando o glifosato é usado de acordo com seu rótulo atual e manifesta que é improvável que este produto seja um carcinógeno humano38 . Com relação à associação entre a exposição ao glifosato e o LNH, a agência avaliou os estudos recentes de Zhang et al.39 e Leon et al.40 e afirmou que nenhum dos estudos revelaram impacto na avaliação de risco do glifosato e, portanto, no posicionamento da agência.
O herbicida 2,4-D, de expressiva utilização global, do grupo químico dos fenoxiacéticos, de classe toxicológica I, apresentou 18 ocorrências. Em 2019 foram comercializadas 52.426,92 toneladas deste produto, que ocupa o segundo lugar entre os agrotóxicos mais vendidos7 . A International Agency for Research on Cancer (IARC)5 classifica esse agente como possivelmente carcinogênico para humanos e, junto com o glifosato, tem sido um dos principais alvos de investigação na etiologia de diferentes tipos de câncer, como o LNH, o que pode estimular futuras pesquisas e dar subsídio à regulação de medidas mais restritivas e que contemplem a realidade da exposição a agrotóxicos41 .
O herbicida diurom do grupo químico da ureia, classe toxicológica III, conforme a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), possui ampla aceitação em diferentes países e teve 12 ocorrências no período analisado. Apesar de serem descritos poucos efeitos agudos e nenhum efeito crônico por parte de instituições de referência, no Brasil, EUA e Europa, na “Lista de ingredientes ativos de grande consumo no Brasil com autorização da Anvisa” elaborada pelo Instituto Nacional de Câncer3 , encontra-se uma classificação a partir da EPA conferindo ao diurom relação com o câncer (neoplasia, sem localização definida).
O herbicida paraquate, pertencente ao grupo químico dos bipiridílios, teve 31 ocorrências. Foi proibido no Brasil a partir de 22 de setembro de 2020, em decorrência de reavaliação toxicológica realizada pela Anvisa, conforme Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 177, de 21 de setembro de 201742 . O ingrediente ativo já foi banido da União Europeia e possui classificação de uso restrito (somente sob a supervisão direta de um aplicador certificado) nos EUA.
Em relação a produtos utilizados como inseticidas, a deltametrina foi registrada em 54 ocorrências. Como resultado da reavaliação toxicológica dos ingredientes ativos da Anvisa e, conforme RDC nº 294, de 29 de julho de 2019, a classificação toxicológica desse agente é específica para cada produto. Observa-se que é permitido em outros países e, com relação ao potencial carcinogênico, não foi encontrado nenhum estudo por parte das instituições de referência29 . As manifestações clínicas de efeitos agudos à saúde são as mesmas da cipermetrina, outro ingrediente ativo do grupo químico dos piretroides, que por sua vez, apresentou 16 registros.
O inseticida fipronil, com 20 ocorrências, possui classificação toxicológica II pela Anvisa. É permitido nos EUA, porém, foi banido da União Europeia. Com relação ao potencial carcinogênico, não foram encontradas manifestações de instituições de referência, e para os efeitos agudos em humanos as informações eram muito limitadas. Todavia, este produto possui propriedades neurotóxicas, mas a literatura nesta área aborda apenas os efeitos em animais43 , 44 .
Em relação ao grupo dos carbamatos, apesar de ter sido proibido no Brasil, conforme a RDC nº 185, de 18 de outubro de 201745 , o carbofurano foi responsável por 16 ocorrências no período 2014–2018 na região de estudo. Este agente também foi proibido na União Europeia e nos EUA e possui restrições de uso.
O inseticida chumbinho, que pode pertencer tanto ao grupo químico dos carbamatos como dos organofosforados, com 16 ocorrências registradas, é um produto clandestino e irregularmente utilizado como raticida. Não possui registro na Anvisa, nem em nenhum outro órgão de governo. Os principais produtos utilizados nas formulações são: aldicarb (proibido no Brasil), carbofurano (carbamato), terbufós (organofosforado), forato (organofosforado), monocrotofós (organofosforado) e metomil (carbamato).
O inseticida imidacloprido, com 11 ocorrências, do grupo químico dos neonecotinoides, possui classificação toxicológica III pela Anvisa, e é amplamente permitido em diferentes países. Os agrotóxicos deste grupo químico têm recebido atenção devido aos seus efeitos adversos em organismos e ecossistemas, inclusive riscos potenciais à saúde dos aplicadores46 .
As restrições para esses inseticidas são mais restritas nos EUA, sendo o fipronil o único produto permitido e os demais enquadram-se sob não carcinogênico (NC), restrito ou análise de registro.
Os sinais e sintomas apresentados na Figura 1 , apesar de serem mais identificados em intoxicações agudas, com o uso acentuado e prolongado podem provocar intoxicações crônicas com risco de desenvolverem doenças graves e câncer. Sendo que alguns desses produtos apresentam potencial carcinogênico de acordo com as classificações toxicológicas definidas pela Anvisa, a EPA e a IARC ( Quadro ).
De modo geral, os sinais e sintomas relatados nos quadros agudos são comuns à maioria dos agrotóxicos, o que dificulta a identificação do agente causador. Normalmente, os casos leves são caracterizados por náuseas, vômitos, cefaleia, tontura, irritação de pele e mucosas3 . Os casos moderados a graves apresentam sinais relacionados ao nível de consciência com desorientação, hiperexcitabilidade, parestesias, convulsões, dificuldade respiratória, contraturas musculares, hemorragia, podendo inclusive, em casos graves, causar óbito se a pessoa afetada não for levada a um serviço de saúde. Os efeitos crônicos ocorrem por exposições prolongadas ao produto químico14 , podendo permanecer semanas, meses, anos ou até mesmo gerações após o período de contato. As consequências são problemas neurológicos, hematológicos, respiratórios, cardiovasculares e câncer. Além disso, estas intoxicações podem acarretar problemas genéticos, como malformações congênitas3 em fetos expostos durante a gestação.
Os dados revelaram incompletude e inconsistências nas informações, falta da integração dos dados entre os sistemas de informação e subnotificação elevada. O fortalecimento dos SIS é necessário para que sejam geradas informações que subsidiem políticas de saúde para os grupos populacionais envolvidos, sendo necessárias diferentes ações de saúde pública e ocupacional para a diminuição dos riscos. O setor saúde precisa continuar investindo em capacitação para os profissionais de saúde para qualificar o preenchimento dos dados nestes sistemas. Neste sentido, as ações de vigilância e fiscalização são necessárias nos municípios do ponto de vista da organização do processo de trabalho, já que os dados revelaram alto risco de exposição. É relevante incentivar também ações de prevenção, pois os casos de intoxicações intencionais (tentativas de suicídio) são frequentes.
Em relação aos efeitos prejudiciais à saúde humana da manipulação de agrotóxicos, evidenciou-se a sua manifestação, predominantemente, nos sistemas digestório, respiratório e neurológico, do corpo humano.
O manejo adequado dos resíduos de produtos químicos revela-se uma importante questão de saneamento ambiental, assim como a necessidade de implantar ações de capacitação integral aos usuários para que se incrementem as medidas de proteção e controle de danos e a implementação da logística reversa em relação aos envases dos produtos. Além disso, poderia ser direcionado um maior aporte de recursos, não só para a diminuição da toxicidade dos produtos, mas também na busca de alternativas agroecológicas de produção. Diante do cenário de extrema vulnerabilidade da população da macrorregião de saúde do Vale do Itajaí, e da população brasileira como um todo, as doenças e os agravos causados pelos agrotóxicos, diretrizes regulatórias e legislações mais restritivas são urgentes.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: angela.ortiga@udesc.br